3.02.2006
sonho #1
Linhas de comboio. Estendidas, paralelas. Um ambiente cinzento, da cor das pedras que eram abraçadas pelas duas linhas, que ao fundo se uniam. Um ponto de fuga. As linhas, uma colecção de textos. Estendidos. Tão estilizados... resolvi nesse mesmo momento escrever um texto no tejadilho de um carro. Com o meu dedo criei as palavras naquelas gotas de água que nasceram graças ao milagre da condensação. E era um texto ao lado. Um texto ao lado dos outros. Não me lembro o que dizia lá. Só me lembro de uma forma. Era curto. Havia um link onde eu podia ir ver os comentários, tal página de internet. O carro estava num parque de estacionamento que entretanto tinha aparecido ao lado das linhas. Era vermelho, o carro. Pessoas apareceram, era de noite e o chão era de terra batida. Castanho, húmido. Havia uma neblina qualquer no ar. As pessoas entraram e havia crianças. Cadeiras de criança no carro. As pessoas entraram no carro e eu estava a tentar ver o que diziam os comentários sobre o meu texto no cimo do tejadilho. Havia três. Um primeiro... qualquer coisa sobre a morte, essa coisa que me domina todos os dias em vez da vida. Um segundo sobre a morte de um tal Alberto. Uma criança. Estava a jogar futebol e por qualquer razão o árbitro não se mostrou muito competente, e o crianço lá morreu graças a uma briga com outro crianço. Triste... não sei bem porquê. E o carro partiu. Não sei como mas eu já estava lá dentro. E havia outro carro ao nosso lado, colado ao meu banco, como uma extensão deste vermelho, mas mesmo assim independente, com as suas quatro rodas e um volante. Eu perguntei para onde iam, e iam para a esquerda. A rua era estranha, uma espécie de floresta que a ladeava. Continuava escuro. Eu queria ir para a direita. Senti-me como o Jack Kerouac, meia perdida, sem ter ninguém que me acompanhasse e ninguém que seguisse a mesma direcção. Decidi sair, agradecer e dizer que ia para a direita. Os comentários e o texto estavam para sempre perdidos. Segui por uma rua. Era mesmo uma floresta. Abandonada. E havia uma sombra que a acompanhava. Uma vila abandonada do séc. XXI. Um dia já tinha sido uma cidade. Numa esquina havia dois prédios, gémeos. Estavam rodeados de ervas compridas amarelas. Secas. O resto estava deserto. Um cinzento escuro, que cobria os tijolos preguiçosamente sobrepostos, ocupava todo o exterior dos prédios. Pareciam bonitos, vistos dali. Não me lembro de como lá entrei, mas lembro-me de estar numa sala/cozinha/quarto. Uma mulher. Uma mulher veio e deixou-me dormir lá. Eu deitei-me. Ela entrou para outra divisão da casa. Havia uma janela atrás de mim, coberta com plástico e fita cola. Na parede estavam cartões pintados. Montes e montes de cartões pintados com vermelho e preto que se transformavam em padrões que se iam transformando em pinturas na parede e em frases. De repente estava tudo finalmente transformado e eu conseguia ler “TIO ALBERTO, VOLTA.” E histórias sobre ele que eu acho que não li mas que a mulher me contou. Havia muitos corações de papel também. Colagens... flores e pinturas de crianças. Do lado esquerdo estava uma cozinha. E à minha frente havia uma sala que se estendia. Uma mesa redonda ao canto, vasos com umas flores de cor morta no parapeito da janela, e uma luz amarela. Começava a ser de dia. Mas era um dia doente. Um homem, que eu sabia ser o marido da mulher, entrou com duas crianças. Pequeninos, ainda. Uns 4 ou 5 anos. Olhos rasgados. O homem era padrasto da filha mais velha da mulher. A rapariga já tinha partido há muito. Tinha casado e era brasileira. O padrasto era mau. Estava a por a louça na máquina e a embirrar com o sitio dela. A máquina estava cada vez mais perto de mim e cada vez maior. Eu estava deitada numa cama pequenina que lá estava. Os miúdos andavam para lá, e eu tive pena deles, porque o pai preferia embirrar com a posição da louça na máquina de lavar e gritar com eles em vez de brincar e de os abraçar, e eles pareciam já estar habituados. Saí pela janela que estava atrás de mim. Saí e a filha mais velha veio ter comigo, a voar num dragão castanho clarinho. Ela estudava bruxaria e eu sabia não sei como que a família não via isso com bons olhos. Montei no dragão com ela e disse-lhe que o mundo estava doente. Que tínhamos que sair dali. Ela disse que não podia, que tinha o filho e o marido em casa e tinha que voltar. Eu olhei para o chão e vi cavalos como nunca tinha visto. Uns em cima dos outros, de pernas para o ar, a morrer. Disse-lhe, ela respondeu que era normal, estavam só a dormir. Eu disse-lhe que os cavalos não dormiam assim. Estava de dia, e o dia estava doente, estava amarelado. Era tudo amarelado. Eu voei com ela e lembro-me de já estar de novo nos meus pés a descer um lance de escadas cinzentas. Muita gente atrás de mim. Corríamos todos para o mesmo sítio. O único sitio para onde podíamos escapar da doença do mundo. Descia as escadas encostada à parede, com o meu ombro. Cheguei ao fim e vi uma sala, protegida com vidro. À porta estava uma mulher gorda e bêbada, a pedir-nos para pagar a entrada. Eu disse que não pagava, que não tinha que pagar nada. Entrei. Umas projecções de uns filmes azuis corriam em cada uma das paredes. Eu deambulava. Descobri que era uma festa de publicitários bêbados que não se importavam com o mundo e só queriam estar bêbados. A mulher estava sentada num banco almofadado de pele preta e corrido ao longo de toda a parede. Ria-se e estava muito bêbada. Sempre que se mexia inclinava-se porque já não encontrava equilíbrio. Eu queria sair dali. Sabia que o mundo ia morrer. Os capitalistas vieram. Lembro-me de homens de fato. Lembro-me de um homem muito baixinho, gordinho e careca. Um parasita. Fomos até à lua que morava no cimo de um monte para lhe pedir ácido sulfúrico. Se varrêssemos o mundo com ácido sulfúrico ele ficava bom outra vez. E a lua tinha lá um monte dele. Deu-nos um bom pedaço, mas o homem baixinho fez xixi pelas pernas abaixo mesmo em cima desse monte. Imediatamente o ácido começou a reagir. E só eu é que vi. Chegamos à terra, que era logo abaixo da lua, e estávamos num corredor gigante de um chão muito sujo. Havia paredes mas não havia tecto. Todos tínhamos vassouras. Espalharam o monte por cada um de nós e começamos a varrer. Para surpresa de todos menos minha o ácido não fazia efeito. E eu contei o que tinha acontecido. Eles disseram que eu tinha razão, que a urina fazia o ácido reagir, então deram-me o ácido para eu o espalhar, mas eu sabia que não ia fazer diferença nenhuma. Como se o facto de eu ter sido a única pessoa a dizer a verdade fosse fazer com que ele resultasse. Os capitalistas estavam-me a matar de ódio. Todos de fatinho, a tentar varrer um mundo que eu sabia que tinha sido destruído por nós mas ninguém o assumia. Já não havia voltar atrás. A lua já não tinha tanto ácido sulfúrico para nos dar. Estava arruinado. E o mundo ia morrer. E o dia era amarelo.
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